O território como o espaço concreto
A Geografia Política tradicional definiu o território como o espaço concreto em si, apropriado por um determinado agente ou grupo social, tendo em vista que a noção de apropriação empregada no conceito ilustra a existência de uma relação de poder construída pelo homem sobre um espaço delimitado.
Para Friedrich Ratzel, geógrafo alemão fundador da geografia política enquanto disciplina da ciência geográfica, mais particularmente como um ramo da geografia humana, a apropriação duradoura, perene do território é capaz de construir vínculos e identidades de forma que um povo não possa mais ser compreendido, concebido sem seu território, pois tais identidades estariam ligadas aos atributos do espaço ocupado.
Mapa Antigo do Rio de Janeiro
O pensamento de Ratzel esteve muito vinculado ao projeto de construção do Estado nacional alemão e à legitimação do expansionismo territorial do Reich. Isso tanto explica quanto exemplifica porque o conceito de território foi tão fortemente associado a um referencial político do Estado. Falar em território significava, praticamente, falar em território nacional. Tanto a Geografia quanto a Ciência Política assim restringiam o conceito tendo em vista o Estado como o detentor do poder por excelência.
O território como campo de forças
A renovação crítica do pensamento geográfico propôs uma interpretação diferente, mais ampla do que a proposta pela geografia clássica, do conceito de território. Nela, o território não é o espaço concreto em si mas as relações de poder espacialmente delimitadas que operam sobre uma base, um substrato material referencial.
Diferente da proposta de Ratzel, a constituição dos territórios não depende de um longo enraizamento para a construção de identidades e relações de poder.
Os territórios podem ser construídos e dissolvidos rapidamente ou seja, tendem a ser mais instáveis do que estáveis. Ou ainda, podem ter uma existência regular e periódica.
Marcelo José Lopes de Souza, em artigo sobre território publicado no livro Geografia: Conceitos e Temas*, explica essa proposta de conceituação do território como “campo de forças” [1] a partir de exemplos de territorialidade urbana, como os territórios da prostituição, do comércio ambulante e das máfias do narcotráfico no Rio de Janeiro.
Nesses casos, o autor explica que a territorialidade pode se estabelecer das seguintes maneiras:
- Territorialidade cíclica: os espaços onde a prostituição ocorre são ocupados no período noturno. Durante o dia, o perfil das pessoas que ocupam o território é diferente. Ao contrário, o comércio ambulante, que também possui uma temporalidade bem definida, predomina ao longo do dia e vai se esvaindo com o anoitecer.
- Territorialidade móvel: ainda tomando como exemplo a questão da prostituição, o autor explica que pode haver disputa entre grupos rivais (prostituição masculina, feminina, travestis etc.) e como conseqüência pode haver mudanças nos limites controlados por cada grupo. Os limites dos territórios da prostituição são instáveis.
- Territorialidade em rede: é o exemplo da estrutura espacial do tráfico de drogas, onde cada facção detém o controle de algumas áreas (favelas) relativamente distantes entre si, e intercaladas tanto pelo “asfalto” quanto por outras áreas controladas por facções rivais. No entanto, o conjunto das áreas controladas por uma facção forma uma rede pois essas áreas são conectadas por fluxos diversos (de armas, drogas, dinheiro, ordens de comando etc.). A sobreposição das redes, tanto entre as controladas por cada facção, quanto com o “asfalto”, forma uma malha complexa constituída pelo que o autor optou chamar de “territórios descontínuos”[2].
Um conceito polissêmico
O conceito de território refere-se à espacialidade humana e, por isso, muito além da Geografia, desperta o interesse de outros ramos do conhecimento, cada qual enfatizando suas perspectivas. Desse modo, o conceito ganha muitos significados, torna-se polissêmico.
Rogério Haesbaert dá elementos dessa polissemia quando explica a “amplitude do conceito”[3] a partir do enfoque geral das principais ciências que se interessam por ele:
“Enquanto o geógrafo tende a enfatizar a materialidade do território, em suas múltiplas dimensões (que deve[ria] incluir a interação sociedade-natureza), a Ciência Política enfatiza sua construção a partir das relações de poder (na maioria das vezes, ligada a concepção de Estado); a Economia, que prefere a noção de espaço à de território, percebe-o muitas vezes como um fator locacional ou como uma das bases da produção (enquanto “força produtiva”); a Antropologia destaca sua dimensão simbólica, principalmente no estudo das sociedades ditas tradicionais (mas também no tratamento do “neotribalismo” contemporâneo); a Sociologia o enfoca a partir de sua intervenção nas relações sociais, em sentido amplo, e a Psicologia, finalmente, incorpora-o no de debate sobre a construção da subjetividade ou da identidade pessoal, ampliando-o até a escala do indivíduo”.[4]
Fica evidente que o conceito de território possui múltiplas acepções. Essas várias noções foram sintetizadas por Haesbaert em quatro vertentes:
- Política: onde o território é visto como espaço delimitado onde se exerce uma relação de poder;
- Cultural(ista): onde o território é interpretado como fruto da apropriação ou valorização simbólica do espaço vivido por um grupo social.
- Econômica ou economicista: onde a dimensão espacial das relações econômicas é enfatizada.
- Natural(ista): onde o território é visto a partir da relação entre o homem e a Natureza, do comportamento “natural” dos homens em relação ao meio físico.
Apesar do esforço de sintetizar a polissemia do conceito nessas quatro vertentes, Haesbaert propõe que a discussão seja organizada “a partir de outro patamar, mais amplo, em que estas dimensões se inserem dentro da fundamentação filosófica de cada abordagem”.[5] Desse modo, a conceituação de território é proposta segundo “o binômio materialismo-idealismo” e segundo “o binômio espaço-tempo”.
Entenda-se que, quanto ao binômio materialismo-idealismo, Haesbaert qualifica como perspectivas materialistas a “natural”, a econômica e a política; e qualifica como idealista a perspectiva cultural ou simbólica do território. Ele entende que tais perspectivas podem ser analisadas tanto a partir de uma visão do território que chamou de “parcial” (que enfatiza uma dessas perspectivas, seja a “natural”, a econômica etc.); ou que essas perspectivas podem ser analisadas a partir de uma visão integradora de território, para atender a questões que envolvem todas elas juntas.
A abordagem segundo o binômio espaço-tempo consiste na visão relacional de território onde este é compreendido como “completamente inserido dentro de relações social-históricas”. [6] Esta abordagem coincide com aquela feita por Marcelo José Lopes de Souza, explicada acima, onde o território é visto prioritariamente como um conjunto de relações sociais, um campo de forças. Haesbaert sinaliza que a interpretação de Souza é justamente cuidadosa pois não nega a materialidade do território e, por isso, evita uma ”desgeografização” do território, que seria acompanhada de um excesso de “sociologização” e “historicização” do conceito.
Sendo assim, o território, um conceito que interessa a muitas ciências, a concepção do conceito dependerá da posição filosófica de cada pesquisador e da opção por uma dessas perspectivas, ou ainda, pode-se empreender um esforço de superação dessa “dicotomia material/ideal” para integrar tanto a dimensão material quanto a dimensão simbólica como partes inseparáveis do conceito.
Referências:
[1] e [2] SOUZA, Marcelo José Lopes 1995. O território: sobre espaço, poder, autonomia e desenvolvimento. In: Castro et al. (orgs.) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
[3] [4] [5] e [6] COSTA, Rogério Haesbaert da. 2006. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
* O autor desse blog, criado em 2007, não tinha conhecimento da existência do livro organizado por Castro, Gomes e Corrêa quando escolheu o título, que se adéqua à proposta do blog, que é apresentar conceitos (como faz nesse texto) e temas, como é o caso da maioria dos textos aqui publicados, uma coincidência que muito nos honra depois que tivemos contato com a obra e passamos a conhecer o conteúdo de seus textos.
Esta postagem é dedicada ao centenário do falecimento do Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Júnior, Ministro das Relações Exteriores do Brasil entre 1902 e 1912, falecido a 10 de fevereiro de 1912, enquanto ocupava o cargo, sendo uma unanimidade nacional em seu tempo e o principal responsável pela expansão do território brasileiro no período republicano.